terça-feira, 20 de setembro de 2011

História em quadrinho - Malditas perguntas !!!!!!!

A Magia das árvores

   — Eu já lhe disse que as árvores fazem frutos do nada e isso é a mais pura magia. Pense agora como as árvores são grandes e fortes, velhas e generosas e só pedem em troca um pouquinho de luz, água, ar e terra. É tanto por tão pouco! Quase toda a magia da árvore vem da raiz. Sob a terra, todas as árvores se unem. É como se estivessem de mãos dadas. Você pode aprender muito sobre paciência estudando as raízes. Elas vão penetrando no solo devagarinho, vencendo a resistência mesmo dos solos mais duros. Aos poucos vão crescendo até acharem água. Não erram nunca a direção. Pedi uma vez a um velho pinheiro que me explicasse por que as raízes nunca se enganam quando procuram água e ele me disse que as outras árvores que já acharam água ajudam as que ainda estão procurando.
   — E se a árvore estiver plantada sozinha num prado?
  — As árvores se comunicam entre si, não importa a distância. Na verdade, nenhuma árvore está sozinha. Ninguém está sozinho. Jamais. Lembre-se disso.

domingo, 11 de setembro de 2011

Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale com dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo em um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois caminhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Carlos Drummond de Andrade.

sábado, 20 de agosto de 2011

Ao shopping center

Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo

De elevador ao céu
de escada ao inferno:
os estremos se tocam
no castigo eterno.

Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Poe mais que compremos
estamos sempre nus.

nós que pelos seus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação

José Paulo Paes 

Defenestração

   Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
   Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegasse, tudo se complicaria.
   - Os hermeneutas estão chegando!
   - Ih, agora é que ninguém  vai entender mais nada...
   Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam todas a população prostrada pela confusão. Levariam semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
   - Alô...
   - O que é que você quer dizer com isso?
   Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
   - Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
   Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
   Mas nenhuma palavra me fascina tanto quanto defenestração.
   A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser uma ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
   - Defenestras? 
   A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas...Ah, algumas defenestravam.
  Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
   Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheias de implicações. Devo até tê-la usado uma outra vez, como em:
   - Aquele é um defenestrado.
  Dando a entender que era uma pessoa assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
  Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
   Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
   Acabou a minha ignorância mas a minha fascinação. Um ato como esse só tem nome próprio e lugar nos dicionários por razão muito forte. Afinal, não existe, que eu sabia, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
   Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
   - Les defenestrastion. Devem ser proibidas. 
   - Sim; monsieur le Ministre.
   - São o escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
   - Sim, monsieur le Ministre.
   - Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
   Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo cheio de defenestradores latentes.
   - É está a estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
   - Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com o se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela. 
   Quem entre nos nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma  reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
   Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
   - Querida...
   - Mmmm?
   - Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
   - Fala, amor.
   - Sou um defenestrador.
   E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
   - Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
   Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre  gemidos, ele aponta para cina  e balbucia:
   - Fui defenestrado...
   Alguém comenta:
   Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!

Luis Fernando Veríssimo.

   
   

A Pessoa Errada


   Pensando bem, em tudo o que a gente vê, e vivencia, e ouve e pensa, não existe uma pessoa certa pra gente. Existe uma pessoa, que se você for parar pra pensar, é na verdade, a pessoa errada. Porque a pessoa certa faz tudo certinho: chega na hora certa, fala as coisas certas, faz as coisas certas.Mas nem sempre precisamos das coisas certas. Aí é a hora de procurar a pessoa errada. A pessoa errada te faz perder a cabeça, fazer loucuras, perder a hora, morrer de amor. A pessoa errada vai ficar um dia sem te procurar, que é para na hora que vocês se encontrarem a entrega seja muito mais verdadeira.A pessoa errada, é na verdade, aquilo que a gente chama de pessoa certa. Essa pessoa vai te fazer chorar, mas uma hora depois vai estar enxugando suas lagrimas, essa pessoa vai tirar seu sono, mas vai te dar em troca uma inesquecível noite de amor. Essa pessoa pode não estar 100% do tempo ao seu lado, mas vai estar toda a vida esperando você.A pessoa errada tem que aparecer para todo mundo, porque a vida não é certa, nada aqui é certo. O certo mesmo é que temos que viver cada momento, cada segundo amando, sorrindo, chorando, pensando, agindo, querendo e conseguindo. Só assim, é possível chegar aquele momento do dia em que a gente diz: "Graças a Deus, deu tudo certo!", quando na verdade, tudo o que Ele quer, é que a gente encontre a pessoa errada, Para que as coisas comecem a realmente funcionar direito prá gente.
   Nossa missão: Compreender o universo de cada ser humano, respeitar as diferenças, brindar as descobertas, buscar a evolução.


Luis Fernando Veríssimo

sábado, 30 de julho de 2011

Pai não entende nada

 - Um biquíni novo?
 - É, pai.
 - Você comprou um no ano passado!
 - Não serve mais, pai. Eu cresci.
 - Como não serve? No ano passado você 14 anoas, este ano tem 15. Não cresceu tanto assim.
 - Não serve pai.
 - Está bem, está bem. Toma o dinheiro. Compra um biquíni maior.
 - Maior não pai. Menor.
 Aquele pai, também não entendia nada.

Luis Fernando Veríssimo. Festa de criança. São Paulo, Ática, 2000.

Teatro do absurdíssimo

Cenário: Mesa de restaurante.
Cena: Dois amigos sentados, doutor Doctor e senhor Monsieur. Ao fundo gerente e garçom.


Doutor Doctor - Garçom, a conta !
Garçom - (Aproxima-se.) Mas doutor! O senhor já pagou a conta.
Doutor Doctor - Não discuta. O freguês tem sempre razão! Traga a conta que eu quero pagar.
(Garçom afasta-se.)
Doutor Doctor - (Ao seu amigo, senhor Monsieur.) Esses garçons andam terríveis!
(Garçom volta novamente com a conta.)
Garçom - Aqui está, doutor.
Doutor Doctor - (Pagando.) Toma. Pode guardar o troco.
Senhor Monsieur - Vamos embora.
Doutor Doctor - Vamos sim. Antes deixa só eu pagar a conta. (Chama.) Garçom!!
Garçom - (Aproxima-se.) Pois não, doutor
Doutor Doctor - A conta, por favor.
Garçom - Mas doutor! O senhor já pagou a conta duas vezes!
Doutor Doctor - Você quer discutir comigo, é?! Seu malcriado! Traga logo a conta que eu quero pagar!
Garçom - (Assustado.) Trago sim, doutor.
Doutor Doctor - Eu não estou dizendo? Esse serviço anda péssimo.
(Garçom volta com a conta novamente.)
Garçom - (Meio com medo.) Está aqui.
Doutor Doctor - (Pagando mais uma vez.) E não esqueça de guardar o troco.
(Garçom vai se afastando quando o doutor Doctor chama-o de novo.)
Doutor Doctor - Ah, garçom. E não se esqueça de trazer a conta.
Garçom - Por favor, doutor! O senhor já pagou a conta mais de três vezes!!
Doutor Doctor - (Levanta-se e vai saindo furioso.) É um absurdo ter que discutir com este garçom! Nunca mais ponho meus pés neste restaurante!!! (Sai.)
Garçom - Mas eu não entendo...(Confuso.)
(Aproxima-se o gerente e pergunta.)
Gerente - Afinal de contas, o que foi que houve?
Senhor Monsieur - (Que continuou sentado.) Nada, não. É uma mania que meu amigo tem de ficar pagando conta. Toda vez que eu saio pra almoçar com ele é a mesma coisa. Quer pagar a conta sempre. Mas agora pra mim chega. Hoje quem paga sou eu. Garçom a conta!




Jô Soares. O astronauta sem regime.
Porto Alegre, L&PM, 1983.
  

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Caderno novo

Uma vez eu estava conversando com amigos e a conversa chegou naquele estágio em que só há duas opções: ou ir para casa dormir ou cair na bobagem.
Caímos na bobagem. Afinal é para isso que servem os amigos.
Depois de nos propormos vários desafios do tipo “quem era que melhor gritava de pavor no cinema?”, chegamos a uma daquelas questões definitivas e definidoras. Qual é a melhor sensação do mundo?
As respostas variaram, desde “banho quente” até “acordar cedo, começar a sair da cama e então lembrar que é feriado”, passando, claro, por outras menos publicáveis. Mas aí um amigo disse duas palavras que liquidaram a questão.
- Caderno novo.
Todos concordaram. Não foi preciso nem entrar em detalhe, dizer “a sensação de abrir um caderno novo, no primeiro dia da escola, e alisar com a ponta dos dedos a página vazia, sentindo o volume de todas as páginas vazias por trás dela, aquele mundo de coisas ainda não escritas... E o cheiro do caderno!” Não houve um que não concordasse que nenhuma sensação do mundo se igualava aquela.
O caderno novo também nos provocava uma certa solenidade, lembra? Diante de sua limpeza, fazíamos um juramento silencioso que aquele ano seríamos alunos perfeitos. E realmente caprichávamos ao preencher o caderno novo com cuidado respeitoso. Pelo menos até a quarta ou quinta página, quando então voltávamos a ser os mesmos relaxados do ano anterior.   Mesmo porque aí o caderno não era mais novo.

Luis Fernando Verissimo