sábado, 20 de agosto de 2011

Defenestração

   Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
   Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegasse, tudo se complicaria.
   - Os hermeneutas estão chegando!
   - Ih, agora é que ninguém  vai entender mais nada...
   Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam todas a população prostrada pela confusão. Levariam semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
   - Alô...
   - O que é que você quer dizer com isso?
   Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
   - Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
   Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
   Mas nenhuma palavra me fascina tanto quanto defenestração.
   A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser uma ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
   - Defenestras? 
   A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas...Ah, algumas defenestravam.
  Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
   Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheias de implicações. Devo até tê-la usado uma outra vez, como em:
   - Aquele é um defenestrado.
  Dando a entender que era uma pessoa assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
  Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
   Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
   Acabou a minha ignorância mas a minha fascinação. Um ato como esse só tem nome próprio e lugar nos dicionários por razão muito forte. Afinal, não existe, que eu sabia, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
   Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
   - Les defenestrastion. Devem ser proibidas. 
   - Sim; monsieur le Ministre.
   - São o escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
   - Sim, monsieur le Ministre.
   - Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
   Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo cheio de defenestradores latentes.
   - É está a estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
   - Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com o se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela. 
   Quem entre nos nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma  reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
   Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
   - Querida...
   - Mmmm?
   - Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
   - Fala, amor.
   - Sou um defenestrador.
   E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
   - Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
   Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre  gemidos, ele aponta para cina  e balbucia:
   - Fui defenestrado...
   Alguém comenta:
   Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!

Luis Fernando Veríssimo.

   
   

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