sábado, 30 de julho de 2011

Pai não entende nada

 - Um biquíni novo?
 - É, pai.
 - Você comprou um no ano passado!
 - Não serve mais, pai. Eu cresci.
 - Como não serve? No ano passado você 14 anoas, este ano tem 15. Não cresceu tanto assim.
 - Não serve pai.
 - Está bem, está bem. Toma o dinheiro. Compra um biquíni maior.
 - Maior não pai. Menor.
 Aquele pai, também não entendia nada.

Luis Fernando Veríssimo. Festa de criança. São Paulo, Ática, 2000.

Teatro do absurdíssimo

Cenário: Mesa de restaurante.
Cena: Dois amigos sentados, doutor Doctor e senhor Monsieur. Ao fundo gerente e garçom.


Doutor Doctor - Garçom, a conta !
Garçom - (Aproxima-se.) Mas doutor! O senhor já pagou a conta.
Doutor Doctor - Não discuta. O freguês tem sempre razão! Traga a conta que eu quero pagar.
(Garçom afasta-se.)
Doutor Doctor - (Ao seu amigo, senhor Monsieur.) Esses garçons andam terríveis!
(Garçom volta novamente com a conta.)
Garçom - Aqui está, doutor.
Doutor Doctor - (Pagando.) Toma. Pode guardar o troco.
Senhor Monsieur - Vamos embora.
Doutor Doctor - Vamos sim. Antes deixa só eu pagar a conta. (Chama.) Garçom!!
Garçom - (Aproxima-se.) Pois não, doutor
Doutor Doctor - A conta, por favor.
Garçom - Mas doutor! O senhor já pagou a conta duas vezes!
Doutor Doctor - Você quer discutir comigo, é?! Seu malcriado! Traga logo a conta que eu quero pagar!
Garçom - (Assustado.) Trago sim, doutor.
Doutor Doctor - Eu não estou dizendo? Esse serviço anda péssimo.
(Garçom volta com a conta novamente.)
Garçom - (Meio com medo.) Está aqui.
Doutor Doctor - (Pagando mais uma vez.) E não esqueça de guardar o troco.
(Garçom vai se afastando quando o doutor Doctor chama-o de novo.)
Doutor Doctor - Ah, garçom. E não se esqueça de trazer a conta.
Garçom - Por favor, doutor! O senhor já pagou a conta mais de três vezes!!
Doutor Doctor - (Levanta-se e vai saindo furioso.) É um absurdo ter que discutir com este garçom! Nunca mais ponho meus pés neste restaurante!!! (Sai.)
Garçom - Mas eu não entendo...(Confuso.)
(Aproxima-se o gerente e pergunta.)
Gerente - Afinal de contas, o que foi que houve?
Senhor Monsieur - (Que continuou sentado.) Nada, não. É uma mania que meu amigo tem de ficar pagando conta. Toda vez que eu saio pra almoçar com ele é a mesma coisa. Quer pagar a conta sempre. Mas agora pra mim chega. Hoje quem paga sou eu. Garçom a conta!




Jô Soares. O astronauta sem regime.
Porto Alegre, L&PM, 1983.
  

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Caderno novo

Uma vez eu estava conversando com amigos e a conversa chegou naquele estágio em que só há duas opções: ou ir para casa dormir ou cair na bobagem.
Caímos na bobagem. Afinal é para isso que servem os amigos.
Depois de nos propormos vários desafios do tipo “quem era que melhor gritava de pavor no cinema?”, chegamos a uma daquelas questões definitivas e definidoras. Qual é a melhor sensação do mundo?
As respostas variaram, desde “banho quente” até “acordar cedo, começar a sair da cama e então lembrar que é feriado”, passando, claro, por outras menos publicáveis. Mas aí um amigo disse duas palavras que liquidaram a questão.
- Caderno novo.
Todos concordaram. Não foi preciso nem entrar em detalhe, dizer “a sensação de abrir um caderno novo, no primeiro dia da escola, e alisar com a ponta dos dedos a página vazia, sentindo o volume de todas as páginas vazias por trás dela, aquele mundo de coisas ainda não escritas... E o cheiro do caderno!” Não houve um que não concordasse que nenhuma sensação do mundo se igualava aquela.
O caderno novo também nos provocava uma certa solenidade, lembra? Diante de sua limpeza, fazíamos um juramento silencioso que aquele ano seríamos alunos perfeitos. E realmente caprichávamos ao preencher o caderno novo com cuidado respeitoso. Pelo menos até a quarta ou quinta página, quando então voltávamos a ser os mesmos relaxados do ano anterior.   Mesmo porque aí o caderno não era mais novo.

Luis Fernando Verissimo