quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Vidas Secas - Capitulo 2 - Fabiano

FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aió um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinário. Não o encontrou, mas supôs distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a oração era forte.
Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência tranqüila e marchou para casa. Chegou-se a beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.
Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.
A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga a novilha raposa.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos - e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao belga, pôs-se a fumar regalado.
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se o ouvindo falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha - e ali estava forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
- Um bicho, Fabiano. Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de Mococa. Viera a trovoada.
E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.
Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se - Você é um bicho, Baleia.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. As vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que não era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o, vexado: - Esses capetas têm idéias ...
Não completou o pensamento, mas achou que aquilo estava errado. Tentou recordar o seu tempo de infância, viu-se miúdo, enfezado, a camisinha encardida e rota acompanhando o pai no serviço do campo, interrogando-o debalde. Chamou os filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessá-los. Bateu palmas - Ecô! ecô!
A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e quipás, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era bom eles saberem que deviam proceder assim.
Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou à ladeira que levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se morresse, não seria por culpa dele.
- Eco! ecô! Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano se destoldou. Aquilo é que estava certo. Baleia não podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercício fácil - bater palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a voltar, a língua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que não fora ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho medonho.
Agora queria entender-se com Sinhá Vitória a respeito da educação dos pequenos. Certamente ela não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.

- Está aí. Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.

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